Presidente
usa impulso dos protestos nas ruas para tentar emplacar uma perigosa
reforma política que o PT fracassou em implementar no Congresso
|
MAU EXEMPLO - Nicolás Maduro,
presidente da Venezuela, presenteia presidente Dilma Rousseff com uma
imagem do falecido coronel Hugo Chávez. Na Venezuela, referendos foram
usados para dar uma máscara de legitimidade a um governo autoritário
|
Destinada a confrontar a população com questões objetivas e diretas, a
realização de um plebiscito é uma ferramenta legítima do processo
democrático. A história recente, entretanto, demonstra que ele pode ser
utilizado para propósitos pouco nobres: vizinhos sul-americanos
recorreram ao mecanismo para tentar governar diretamente com o povo,
passando por cima das instituições democráticas e se perpetuando no
poder. Em resposta à inédita onda de protestos que chacoalhou o Brasil, a
presidente Dilma Rousseff propôs uma consulta popular para promover uma
reforma política no país - ainda que nenhum cartaz tenha reivindicado
isso. A estratégia bolivariana, tirada da manga no momento mais crítico
do seu governo, acoberta um perigoso interesse: aprovar o financiamento
público de campanha e o voto em lista, antigos sonhos do PT.
Como avalia o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, a opção pelo
plebiscito “joga areia nos olhos do povo”. Um levantamento do Datafolha
constatou que a reforma política era uma reivindicação de apenas 1% dos
manifestantes que tomaram as ruas de São Paulo nas últimas semanas. Mas o
governo não quer perder a oportunidade aberta pelo clima mudancista.
O PT defende o financiamento público de campanha porque seria o maior
beneficiário desses recursos, já que tem a principal bancada na Câmara
dos Deputados e esse é o critério usado para a divisão do bolo. Com o
financiamento público, o partido conseguiria assegurar recursos
superiores aos das outras siglas. Caso o caixa dois não seja
efetivamente extinto, o que é uma hipótese plausível, o dinheiro de
bancos e empreiteiras continuariam a seguir a lógica de favorecer quem
tem a chave do cofre - no caso da União, o PT. Por isso, interessava
mais ao partido a ideia inicial de Dilma, que incluía uma Assembleia
Constituinte com poderes para dar os rumos à reforma. Mas a ideia
fracassou por ser inconsistente e sem base jurídica. Ainda assim, o PT
aposta na capacidade de mobilização de sua própria militância para
moldar o sistema político-eleitoral.
Ciente das intenções de seu principal aliado, o PMDB é majoritariamente
contrário ao financiamento público. Os peemedebistas têm bom
relacionamento com o empresariado e um elevado número de governos
estaduais; também por isso, não veem razões para uma mudança no sistema.
Voto proporcional - O sistema de eleição para
deputados e vereadores é o segundo ponto-chave que deve constar do
plebiscito. A adoção do voto em lista, outro tema que surgirá na
consulta, favoreceria o PT. O partido tem questão fechada na defesa
desse tema: seguidas pesquisas mostram que, dentre as legendas, o
Partido dos Trabalhadores possui, de longe, a maior fatia de eleitorado
fiel. O DEM, que se posiciona na centro-direita e não tem concorrentes
neste campo, também quer o voto em lista.
O PSDB é a favor do voto distrital, cuja defesa consta do estatuto da
sigla. A regra seria bem aplicável em estados como São Paulo e Minas
Gerais - onde os tucanos têm maior poder de fogo. Nesses estados, muito
extensos e populosos, os candidatos se dividem informalmente entre
cidades e regiões, o que já se aproxima do voto distrital. O PSD também
fechou questão em defesa do voto distrital.
Para o PMDB, que sofre de fraqueza programática e é mais personalista
dos que as outras siglas, a saída defendida é o chamado "distritão". O
modelo é o mais simples possível: o eleitor escolhe o candidato,
individualmente, e o voto não influencia o desempenho dos outros nomes
do partido. Ganham os mais votados e o quociente eleitoral, que provoca o
chamado "efeito Tiririca", seria abolido. É como se cada estado fosse
um distrito.
Pressa - Nos últimos dois anos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva se empenhou pessoalmente nas negociações para a implementação da
reforma política defendida pelo PT. Mas, no Congresso, o tema emperrou. O
partido já havia desistido de fazer uma reforma que valesse para as
eleições de 2014 porque, nesse caso, a mudança precisaria estar aprovada
até o início de outubro deste ano. Mas os protestos nas ruas foram
vistos pelo PT como uma "janela de oportunidade". O partido não quer
perder o impulso dado pelas manifestações populares. Por isso, tem
pressa. E não é só: o momento atual é perfeito para que a sigla molde a
reforma política ao seu gosto. Dono da maior bancada na Câmara e hóspede
do Palácio do Planalto, o PT não pode garantir que esse cenário será o
mesmo na próxima legislatura.
Com uma militância ativa em torno dos pontos centrais, além de braços
organizados em sindicatos e entidades estudantis, o PT aposta que poderá
converter essa força de mobilização em resultados no plebiscito. Para
isso, é até bom que o eleitor comum, desmobilizado, não participe do
processo. "Seguramente não são todos os cidadãos que vão se interessar
por participar do plebiscito, mas todos aqueles que têm interesse neste
debate terão espaço concreto de atuação: poder votar e ajudar a definir
as prioridades da reforma política", disse o ministro da Educação,
Aloizio Mercadante.
O presidente do DEM, senador José Agripino Maia (RN), estranha a pressa
repentina. "É no mínimo curioso. O governo tem pressa para encontrar o
caminho diversionista e fugir da crise", diz ele. O deputado Rubens
Bueno, líder do novo MD (fusão do PPS com o PMN) na Câmara, defende que o
Congresso elabore a reforma e a população apenas decida se aprova ou
rejeita as mudanças, em bloco: "A nossa ideia básica é o Congresso
Nacional votar todas essas sugestões e submetê-las a um referendo na
mesma data das eleições do ano que vem", diz.
Riscos e obstáculos - A cegueira momentânea causada pelo anúncio
inesperado da presidente encobre uma dificuldade técnica: o de
apresentar, por plebiscito, questões para as quais a votação pode não
apresentar maioria. “Basta haver três perguntas para não ser plebiscito.
Imagine que, no sistema eleitoral (proporcional, distrital e distrital
misto), um tipo consiga 35% dos votos, o outro 34% e o terceiro 31%. Não
há formação de maioria”, alerta Reale Júnior, que considera impossível
usar esse modelo de votação para um tema como a reforma política. “Não
há necessidade de chamar as pessoas para definir a reforma. É uma falta
de juízo”, completa Reale, reiterando que os temas em jogo são bastante
complexos.
Na última quarta-feira, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal
(STF), Carlos Ayres Britto, comparou o plebiscito proposto agora com a
entrega de um “cheque em branco” aos deputados e senadores que já miram
nas eleições de daqui a um ano e meio. A metáfora de Britto é uma
referência à grande margem de indefinição que pode resultar da votação
que se desenha. O roteiro estabelecido para os plebiscitos é, em resumo,
a criação de um decreto legislativo com um terço de aprovação de uma
das Casas, a discussão dos temas e das perguntas ao eleitor, a apuração e
o encaminhamento da decisão ao Congresso, que deve seguir a orientação
das urnas. O rito é perfeito, por exemplo, para a decisão sobre a
emancipação de um município. Mas incompatível com questões como
financiamento público de campanhas ou sistemas de votação. Afinal, os
eleitores definirão “se” algo deve ser feito, entregando aos
parlamentares a decisão sobre “como” isso será posto em prática.
“Esse processo pode resultar em uma deliberação da população no vazio”,
afirma Gustavo Binenbojm, professor de Direito Administrativo e
Constitucional da UERJ e do curso de pós-graduação em Direito da
Fundação Getúlio Vargas.
O plebiscito de Dilma, por enquanto, está mergulhado em incertezas. “A
expressão ‘reforma política’ é nesse momento um rótulo em uma caixa
vazia. Ninguém sabe ao certo quais medidas serão propostas”, explica o
coordenador-geral do instituto de Direito da PUC-Rio, Adriano Pillati,
para quem é preciso, no mínimo, de três a quatro meses de debate sobre o
tema com a população.
A saída apontada pelos especialistas para que seja assegurada a
participação popular, mas de forma mais prudente, é, ao fim do processo,
a realização de um referendo. Depois de o Congresso fazer o texto da
reforma política, a população seria convocada às urnas para dizer sim ou
não sobre uma proposta real. Tecnicamente, é possível haver o
plebiscito antes e o referendo depois – apesar de não se eliminar, com
isso, os problemas na origem da proposta de agora. “Existe um risco de a
opção da população ser desvirtuada. Por isso, deveria haver plebiscito e
referendo”, afirma Ivar A. Hartmann, professor de Direito da FGV do Rio
de Janeiro.
No momento, a demanda indiscutível da população nas ruas é por uma
política menos corrupta e mais voltada para o interesse público. A
reforma política – necessária e que se arrasta há anos sem que haja
consenso – surgiu como a tradução possível feita pelos governantes para
retomar o diálogo com os brasileiros. “Há uma esperança enorme em torno
da reforma política. Apesar de necessária, nenhuma reforma produz
políticos melhores. O que muda os políticos é a sociedade, através do
voto”, lembra Adriano Pillati.
Fonte: Veja.com - Por Gabriel Castro, Cecília Ritto e Marcela Mattos