Fernando Gabeira |
Num
dos meus primeiro mandatos de deputado federal defendi na tribuna da
Câmara Os Paralamas do Sucesso, acusados de caluniar o Congresso
Nacional com a música Luís Inácio (300 picaretas). Os primeiros versos
diziam: "Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou/ são trezentos picaretas
com anel de doutor".
Defendi-os em nome da liberdade de expressão. Não concordava
inteiramente com Lula. Talvez fossem 312 ou 417. Reconheço que 300 é um
número redondo, mais fácil de inserir nos versos de uma canção popular.
Além do mais, nem todos têm anel de doutor. Mas isso são detalhes. O
mais importante é registrar que estávamos na véspera da chegada do PT ao
governo federal, início da era do "nunca antes neste país". E aonde
chegamos, agora, uma década depois?
Renan Calheiros deve assumir a presidência do Senado, Henrique Eduardo
Alves, a da Câmara e o deputado Eduardo Cunha, a liderança do PMDB. Caso
se concretizem, esses eventos representam um marco na História do
Congresso. Significa que, para muitas pessoas informadas, o Congresso
deixa de existir. É o fim da picada.
Conheço os passos dessa estrada porque transitei nela 16 anos. O
mensalão significa o ato inaugural, a escolha do tipo e da natureza de
alianças políticas do novo governo. O mensalão significa a compra de
votos dos partidos, uma forma de reduzir o Congresso a um balcão de
negócios. Em seguida vieram as medidas provisórias (MPs). Governar com
elas é roubar do Congresso tempo e energia para seus projetos. A
liberação das emendas parlamentares era a principal compensação pelo
espaço perdido.
Mas deputados e senadores não cedem o espaço porque são bonzinhos ou
temem o governo. As MPs são uma forma simplificada de o governo realizar
seu objetivo. Os parlamentares tomaram carona nesse veículo
autoritário. E inserem as propostas mais estapafúrdias no texto das MPs.
Com isso querem aprovar suas ideias sem o caminho democrático que passa
por debates em comissão, audiências públicas, etc.
Na Câmara essas inserções oportunistas são chamadas de jabuti. O nome
vem da frase "jabuti não sobe em árvore, alguém o coloca lá". O nome
jabuti pressupõe que há interesses econômicos diretos por trás de cada
uma dessas emendas.
A perda de espaço para o governo não é o problema, desde que todos os
negócios continuem fluindo, das MPs às emendas ao Orçamento. O espaço
não interessa, o que interessa é o dinheiro. Espaço por espaço, o
Congresso já abriu uma grande avenida para o Supremo Tribunal Federal
julgar casos polêmicos, como aborto e união gay.
Os negócios, como sempre, são o centro de tudo. Negócios, trambiques,
maracutaias e, como diziam Os Paralamas em 2003, "é lobby, é conchavo, é
propina e jeton". Uma década depois, vendo o Congresso idêntico à sua
caricatura, pergunto quando é que nos vamos dar conta dessa perda, desse
membro amputado de nossa anatomia democrática.
A saída da minoria - chamada, com uma ponta de razão, de Exército
Brancaleone - foi pressionar por dentro e estabelecer uma tensão entre
ala e a opinião pública. Na definição do voto aberto para cassar
deputados, vencemos o primeiro turno porque a imprensa e eleitores
estavam de olho. Vitória esmagadora, contra apenas três abstenções.
Agora até esse caminho está bloqueado. Todos os dispositivos internos
foram reforçados e passaram a impedir tais votações. Com a cumplicidade
do PT, os piores elementos foram ascendendo aos postos estratégicos e
agora o esquema chega ao auge, com a escolha de Calheiros e Alves.
De um lado, interessa-me avaliar como será o futuro do País sem um
Congresso que possa realmente ser chamado por esse nome. De outro lado,
um olho na saída. Não sei se repetiria hoje a campanha contra Renan, os
cartazes com chapéu de cangaceiro e a frase: "Se entrega, Corisco". Nem
se gostaria de ver de novo aqueles bois se deslocando pelos campos
alagoanos para as terras de Renan, para comprovar que era dono de muitas
cabeças de gado. O ideal, hoje, seria poupar os bois dessa nova viagem
inútil. Passar o vídeo, criar uma animação, substituir toneladas de
carne de boi por milhões de pixels.
Henrique Alves destinou dinheiro a uma empresa fantasma de um assessor
dele. No lugar deserto onde a empresa funcionava havia apenas um bode,
chamado Galeguinho. O bode foi dispensado depois de sua estreia. Os bois
mereciam o mesmo. "Parabéns, coronéis, vocês venceram", diz a letra de
Luís Inácio. Deixaram-nos monitorando bois de helicóptero e pedindo ao
bode que nos levasse ao gerente da empresa.
Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou. Mas foi o primeiro a passar para
o lado deles e a contribuir com algumas novas espécies para a fauna já
diversa que encontramos em 2003.
A vitória dos cavaleiros do apocalipse recoloca a urgência de salvar o
Congresso dele mesmo. A maneira de potencializar o trabalho da minúscula
oposição é a maior transparência possível e uma ajuda da opinião
pública. A partir dessa vitória, Calheiros, Alves e seus eleitores no
Parlamento dizem apenas à sociedade: somos assim, e daí? Depois do
descanso merecido, o bode que é o porteiro da empresa favorecida por
Alves deveria ser colocado na porta do Congresso.
É impensável que 300, 312 ou 417 - não importa o número exato -
picaretas enfrentem o Brasil sem uma represália dura. O espírito do
"eles lá, nós aqui", de distância enojada, no fundo, é bom para eles,
que querem total autonomia para seus negócios. Será preciso mostrar que
toda essa farsa é patrocinada pelo dinheiro público. E que sua
performance será amplamente divulgada agora e no período eleitoral. O
instinto de sobrevivência da instituição não existe. Mas o do político é
muito grande. É preciso que ele sinta o desgaste pessoal produzido por
suas escolhas.
Muitas pessoas vão trabalhar nisso, cada uma no seu posto, às vezes em
manifestações. A eleição direta para presidente foi uma conquista. A
perda do Congresso para o ramo dos secos e molhados é uma dolorosa
ferida em nossa jovem democracia.
Nós demos um boi para não entrar nessa luta. Daremos um bode para não sair dela.
Fonte: Jornal Estado de São Paulo - Por Fernando Gabeira é jornalista.
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