Proposta
em curso na Câmara dos Deputados ameaça tirar poder de investigação de
promotores e procuradores em casos criminais. Supremo Tribunal Federal
também vai deliberar sobre o tema
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel
No ano em que o Brasil comemora a vitória dos valores republicanos com o
fim de uma era de impunidade de políticos corruptos, um grupo de
deputados federais e de policiais civis faz avançar sem barulho na
Câmara uma proposta que, se aprovada, reduzirá a atuação de uma das
instituições que mais contribuem para a democracia no combate à
corrupção e ao crime organizado: o Ministério Público. “É o típico
exemplo do retrocesso institucional brasileiro: quando a gente avança em
um aspecto vem a política, que mistura questões corporativas com
questões republicanas”, afirma Lenio Luiz Streck, procurador de Justiça
no Rio Grande do Sul e professor de Direito Constitucional da Unisinos.
Sob a rubrica de PEC-37, a proposta prevê um remendo ao texto da
Constituição Federal, proibindo que promotores e procuradores conduzam
investigações na esfera criminal. A PEC define como competência
"privativa" da polícia as investigações criminais ao acrescentar um
parágrafo ao artigo 144 da Constituição. O texto passaria a ter a
seguinte redação: "A apuração das infrações penais (...) incumbe
privativamente às polícias federal e civis dos estados e do Distrito
Federal." O texto foi aprovado em comissão especial nessa semana e agora
segue para análise da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados e para duas votações no Plenário da Casa. Em seguida, vai ao
Senado.
A legislação brasileira confere à polícia a tarefa de apurar infrações
penais, mas em momento algum afirma que essa atribuição é exclusiva. No
caso do Ministério Público, a Constituição não lhe dá explicitamente
essa prerrogativa, mas tampouco lhe proíbe. É nesse vácuo da legislação
que esse grupo de parlamentares e policiais tenta agora agir.
Oficialmente, o autor da propositura é o deputado Lourival Mendes, do
minúsculo PT do B do Maranhão. Parlamentar de primeiro mandato, o
delegado de carreira maranhense encampa os interesses das polícias Civil
e Federal, que reivindicam o monopólio das investigações criminais.
As tintas da PEC foram dadas por entidades de classe da polícia. “Ou
reagíamos ou seríamos sufocados e destruídos pelo Ministério Público”,
justifica Marcos Leôncio Sousa Ribeiro, presidente da Associação
Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF). Na visão dele, o MP
tomou contornos de um “megapoder”. “Eles têm uma necessidade insaciável
de acumular poder. Usurpam funções da polícia judiciária sem ter essa
previsão constitucional. O pessoal brinca que eles pediram para tirar
das cédulas de real a inscrição ‘Deus seja louvado’ porque não querem
concorrência.” Prossegue Leôncio: “O MP não quer investigar o atacadão.
Ele quer o filé mignon. O que dá trabalho passa para os bestas da
polícia judiciária ficarem enxugando gelo."
No Supremo Tribunal Federal, está desde junho na gaveta do ministro
Luiz Fux o processo que pode pôr fim à polêmica sobre os limites de
investigação do Ministério Público e esclarecer de uma vez por todas as
regras de atuação conjunta entre a instituição e autoridades policiais –
talvez antes mesmo da votação no Congresso da malfadada PEC. Em agosto
de 2009, a corte já havia decidido que o veredicto sobre um recurso do
ex-prefeito de Ipanema (MG), exatamente este nas mãos de Fux, serviria
de base para a solução dos questionamentos judiciais sobre a proibição
de promotores e procuradores comandarem investigações. Mas o processo
ainda não foi concluído.
Diante de uma corte de onze ministros com quatro diferentes correntes
de interpretação sobre o tema, Luiz Fux paralisou a análise do caso.
Para o magistrado, o tribunal, mais do que impor ou não limites ao
trabalho ao MP, precisa estabelecer a abrangência da decisão, ou seja,
se ela interferirá ou não nas milhares de investigações chefiadas por
procuradores e promotores em andamento.
Mesmo com o julgamento em aberto, o STF discute, entre outros pontos, a
possibilidade de o MP conduzir investigações apenas se os próprios
integrantes da instituição estiverem sob suspeita, se agentes policiais
forem o alvo da apuração ou ainda se houver clara omissão da polícia em
determinado caso. Na corte, também existe a corrente de pensamento, da
qual fazem parte Gilmar Mendes e Celso de Mello, segundo a qual o MP
pode conduzir apurações de crimes contra a administração pública, não
apenas atuar de forma complementar à polícia. Há ainda aqueles que
garantem a autonomia completa de investigação do MP, como Joaquim
Barbosa, ou o tolhimento total das atividades investigativas da
instituição, como Marco Aurélio Mello.
As conflitantes interpretações dos ministros têm impacto direto, por
exemplo, nas investigações que levaram o empresário Sérgio Gomes da
Silva, o Sombra, a ser apontado como o mandante do assassinato do
ex-prefeito de Santo André (SP) Celso Daniel, em 2002. Um habeas corpus
em favor do empresário pedindo a anulação das investigações realizadas
pelo MP tem sido julgado em conjunto com o recurso.
O assassinato de Celso Daniel, que assombra até hoje o Partido dos
Trabalhadores, aliás, é uma das principais vitrines da atuação autônoma
do Ministério Público, para quem a morte brutal não se resumiu a um
crime comum, conforme concluiu a polícia. Há uma década, o MP enfrenta
uma batalha para provar que a morte de Celso Daniel tem contornos que
vão muito além de um sequestro equivocado seguido de morte. Neste mês, reportagem de VEJA
trouxe o caso à tona: o publicitário Marcos Valério de Souza, operador
do mensalão, revelou em depoimento à Procuradoria-Geral da República que
Ronan Maria Pinto, um empresário ligado ao antigo prefeito, estava
chantageando o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, para
não envolver seu nome e o do ex-presidente Lula na morte de Celso
Daniel.
É evidente que a atuação de promotores e procuradores também incorre em
erros, especialmente devido à inexperiência e ao deslumbramento com os
holofotes de alguns membros da instituição, movidos pela sanha
acusatória – daí a série de denúncias apresentadas com base em recortes
de jornais, por exemplo. Porém, apurações comandadas pelo Ministério
Público contribuíram para desmontar dezenas de casos de corrupção nos
últimos tempos. Foi assim com a Máfia dos Fiscais, em São Paulo, e com
as denúncias de desvios envolvendo o ex-prefeito Paulo Maluf.
O MP também investigou personagens como o juiz Nicolau dos Santos Neto,
o Lalau, e o ex-senador Luiz Estevão, pivôs do desvio de milhões do
Tribunal Regional do Trabalho (TRT) paulista, e o ex-banqueiro Salvatore
Cacciola, que sangrou os cofres públicos no caso do Banco Marka. Foi o
MP paulista quem descobriu e denunciou os horrores praticados pelo
médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão por ter abusado
de 56 pacientes em sua clínica – ele está foragido desde o ano passado.
Assim como a descoberta e desarticulação do “esquadrão da morte” no
Espírito Santo. A lista é grande e, recentemente, inclui o mais célebre
caso envolvendo agentes políticos, o mensalão, cujas condenações
representam um marco para o Judiciário do país.
“No cotidiano, polícia e MP cooperam para as investigações”, afirma
Alexandre Camanho de Assis, presidente da Associação Nacional dos
Procuradores da República (ANPR). “A PEC-37 cria uma confrontação
artificial, forjada por setores minoritários e radicais da polícia.
Todas as últimas operações bem-sucedidas o foram por força da cooperação
entre a polícia e o Ministério Público.” Assis lembra que, se hoje a
impunidade campeia o Brasil, muito pior seria sem a atuação dos
promotores e procuradores. “A corrupção está ligada a altos cargos
públicos e ao exercício do poder e da manipulação da máquina pública. Se
essa investigação é entregue exclusivamente para a polícia, fica muito
mais fácil sabotar, calar, retardar ou inviabilizar uma investigação. O
Ministério Público é uma magistratura vitalícia e que não se sujeita a
nada, a não ser a lei e à sociedade.”
Exemplo internacional de retrocesso - Na última
quinta-feira, durante a cerimônia de posse do ministro Joaquim Barbosa
na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), o procurador-geral da República, Roberto Gurgel,
tocou no assunto e apontou a restrição dos poderes do MP como “um dos
maiores atentados que se pode conceber ao estado democrático de
direito”. E alertou: “Apenas três países do mundo vedam a investigação
do MP. Convém que nos unamos a esse restritíssimo grupo?”. Gurgel se
referia a Quênia, a Indonésia e Uganda. “Por que o Brasil tem de dar
exemplos negativos para o mundo?”, questiona o procurador gaúcho Lenio
Luiz Streck.
Em países como Alemanha, Espanha, Itália e Estados Unidos, o MP tem um
papel preponderante na investigação e no controle da polícia. Na Itália,
o trabalho de investigação dos promotores desmantelou a Máfia italiana
com a chamada Operação Mãos Limpas. “O que faz diferença nesses países é
que há tem um predador forte, o Ministério Público”, afirma Streckl.
Nos Estados Unidos, o sistema é misto. A promotoria comanda
investigações e os policiais trabalham orientados pela promotoria.
A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece expressamente que o
Ministério Público deve dispor de um grupo de investigadores e ser
encorajado a fazer investigações independentes contra acusações de
execuções sumárias. A entidade recomenda que, se necessário, a
legislação do país seja modificada para facilitar essa tarefa dos
promotores e procuradores. “Atribuir à polícia a exclusividade para a
investigação criminal é ir na contramão da jurisprudência, do avanço
histórico da proteção da cidadania e dos tratados internacionais
assinados pelo Brasil quanto ao combate à criminalidade”, afirma a
procuradora da República em São Paulo Janice Ascari.
Num ano que termina com ares de progresso do Judiciário brasileiro,
resta a pergunta: a quem interessa tolher a atuação de promotores e
procuradores no combate à corrupção e ao crime organizado? Podem até
surgirem interessados. Mas à democracia, certamente, não.
Fonte: Veja
Nenhum comentário:
Postar um comentário